Refletindo o Evangelho do Domingo
Pe. Thomaz Hughes, SVD
TERCEIRO DOMINGO DA PÁSCOA - Ano A
Lc 24, 13-35
“Reconheceram Jesus quando ele repartiu o pão”
Oração do dia
Ó Deus, que o
vosso povo sempre exulte pela sua renovação espiritual, para que, tendo
recuperado agora com alegria a condição de filhos de Deus, espere com plena
confiança o dia da ressurreição. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, Vosso Filho, na
unidade do Espírito Santo.
Evangelho - Lc 24,13-35
+ Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo
Lucas
24,13Naquele mesmo dia, o
primeiro da semana, dois dos discípulos de Jesus iam para um povoado, chamado
Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém. 14Conversavam sobre
todas as coisas que tinham
acontecido. 15Enquanto conversavam e discutiam, o próprio
Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles. 16Os discípulos,
porém, estavam como que cegos, e não o reconheceram. 17Então Jesus
perguntou: 'O que ides conversando pelo caminho?' Eles pararam, com o rosto
triste, 18e um deles, chamado Cléofas, lhe disse: 'Tu és o único
peregrino em Jerusalém que não sabe o que lá aconteceu nestes últimos dias?' 19Ele
perguntou: 'O que foi?' Os discípulos responderam: 'O que aconteceu com Jesus,
o Nazareno, que foi um profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e
diante de todo o povo. 20Nossos sumos sacerdotes e nossos chefes o
entregaram para ser condenado à morte e o
crucificaram. 21Nós esperávamos que ele fosse libertar
Israel, mas, apesar de tudo isso, já faz três dias que todas essas coisas
aconteceram! 22É verdade que algumas mulheres do nosso grupo nos
deram um susto. Elas foram de madrugada ao túmulo 23e não
encontraram o corpo dele. Então voltaram, dizendo que tinham visto anjos e que
estes afirmaram que Jesus está vivo. 24Alguns dos nossos foram ao
túmulo e encontraram as coisas como as mulheres tinham dito. A ele, porém,
ninguém o viu.' 25Então Jesus lhes disse: 'Como sois sem
inteligência e lentos para crer em tudo o que os profetas falaram! 26Será
que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória?' 27E,
começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicava aos discípulos todas
as passagens da Escritura que falavam a respeito dele. 28Quando
chegaram perto do povoado para onde iam, Jesus fez de conta que ia mais
adiante. 29Eles, porém, insistiram com Jesus, dizendo: 'Fica
conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!' Jesus entrou para ficar com
eles. 30Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o,
partiu-o e lhes distribuía. 31Nisso os olhos dos discípulos se
abriram e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles. 32Então
um disse ao outro: 'Não estava ardendo o nosso coração quando ele nos falava
pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?' 33Naquela mesma hora,
eles se levantaram e voltaram para Jerusalém onde encontraram os Onze reunidos
com os outros. 34E estes confirmaram: 'Realmente, o Senhor
ressuscitou e apareceu a Simão!' 35Então os dois contaram o que
tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão.
Palavra da Salvação.
COMENTÁRIO
Talvez um dos relatos mais conhecidos de Lucas seja a história dos dois discípulos na estrada de Emaús. Aqui temos o retrato das comunidades lucanas pelo ano 85 - vacilando na fé, descrentes, desanimadas, sem sentir a presença do Ressuscitado. Lucas procura reanimar o seu pessoal, mostrando que eles não estão abandonados - muito pelo contrário, estão caminhando contando com a presença do Senhor que venceu a morte.
Esta história pode nos ajudar bastante hoje, pois nos indica como devemos usar a Bíblia para animar a nossa caminhada. Jesus é o mestre da Bíblia, e aqui ele ensina como aproveitar a Escritura para iluminar os problemas práticas da nossa caminhada, e nos dar coragem na nossa missão de evangelizadores.
O que temos aqui é realmente um pequeno drama em cinco atos - um drama que nos mostra a pedagogia de Jesus. Vejamos mais de perto:
O Primeiro ato: vv. 13 -19a:“Introdução”
O relato começa com as palavras “nesse mesmo dia”. Devemos já fazer uma parada e nos perguntar “que dia”? Para nós seria o dia da Ressurreição, mas para os dois discípulos era simplesmente o terceiro dia da morte de Jesus! Dia de desânimo, de tristeza. “Os dois iam para um povoado chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém”. Aqui é bom lembrar que o bom judeu não podia caminhar mais do que um quilômetro no dia de sábado. Portanto, era impossível que eles viajassem no dia anterior. Domingo é a sua primeira oportunidade para sair de Jerusalém, e aproveitaram bem - já estão voltando para a sua casa. A cena começa com a desintegração da comunidade cristã. Tudo acabou, a comunidade se dispersa, não há nem alegria nem esperança.
Quem eram eles? Sabemos do relato que um se chamava Cléofas! E o outro? O Evangelho de João nos conta que a irmã de Maria, mãe do Senhor, chamada Maria de Cléofas, estava junto à cruz (Jo 19,25). Não seria demais acreditar que os dois discípulos fossem um casal, Cléofas e a sua esposa, voltando depois da peregrinação pascal à Jerusalém. Nunca saberemos com certeza, mas é uma hipótese agradável e possível. Pois, sendo assim, a descoberta da presença do Ressuscitado dar-se-á no lar e não em uma hospedaria anônima. Seria bem de acordo com a valorização na obra de Lucas da Igreja Doméstica, a Igreja que se reuniu nas casas, como fazem tantas Igrejas vivas de hoje
De repente, no caminho surge Jesus, sem que seja reconhecido. Com isso, Lucas quer dizer que o Ressuscitado não é um defunto que voltou a viver - tem uma nova maneira de ser, um corpo glorificado. É importante notar como Jesus se comporta, através dos verbos que Lucas usa. Ele “aproximou-se”, “caminhou com eles” e “perguntou”. Ele não veio “dando de dedo”, nem dando explicações bíblicas. Ele criou um ambiente de fraternidade onde fosse possível explicar tanto a vida como a Bíblia! Quantas vezes isso falta em nossos grupos, nossas comunidades - não nos aproximamos uns aos outros, mantemos distância! Não caminhamos juntos, queremos dar soluções sem conhecer a realidade dos nossos irmãos e irmãs! E por isso mesmo, muitas vezes não têm efeito as nossas reuniões, os nossos encontros bíblicos.
O “ato” termina com a pergunta dele: “O que é que vocês andam discutindo pelo caminho” (v.17), ou seja, ele dá uma oportunidade para que eles exponham a sua realidade, sem julgamento, sem moralismo. Ele parte da realidade dos dois.
Segundo Ato: vv 19b -24: “Os Discípulos Falam”
Diante da oportunidade de explicitar a sua realidade, Cléofas não titubeia. Ele expõe com clareza a sua situação. Diante da morte de Jesus ele frisa uma coisa importante: “nós esperávamos que ele fosse o libertador de Israel” (v. 21) Eles “esperavam”, portanto não esperam mais nada. Aqui ressoam traços de decepção, desilusão, desânimo, até duma certa revolta contra Jesus, pois todas as suas esperanças tinham sido desfeitas. Os seus sentimentos vão muito além de uma simples tristeza!
É importante notar também que Lucas explicita bem quem foi quem matou Jesus - não foi o povo, foram grupos de interesse bem definidos: “Nossos chefes dos sacerdotes e nossos chefes o entregaram para ser condenado à morte, e o crucificaram” (v.20). Para não reduzir a morte de Jesus a uma fatalidade qualquer, ou a algo desejado pelo Pai, é mister examinar mais profundamente esta afirmação do Cléofas. Jesus foi morto, assassinado judicialmente pelos “chefes dos sacerdotes” - um grupo de sacerdotes do partido aristocrático e conservador dos saduceus, que dominava o comércio do Templo, lucrando muito com a exploração do povo através da religião, e que viu a sua hegemonia ameaçada pela pregação e profetismo de Jesus. Também foi morto pelos “chefes” ou “magistrados”, ou seja, os membros do sinédrio, o órgão do governo interno do povo judaico de Palestina, na maioria pertencentes ao partido elitista dos saduceus (não dos fariseus), e colaboradores com o poder romano, lucrando bastante com isso. Então Jesus foi morto não por acaso, mas para defender os privilégios da elite dominante! A cruz era a conseqüência lógica da vida de Jesus!
Outro elemento importante é o fato de que os dois sabiam do túmulo vazio - dois dos apóstolos já tinham verificado a história das mulheres. Mas isso não dizia nada para eles! Aqui se destaca que a nossa fé não se baseia num túmulo vazio! É a nossa fé na Ressurreição que explica porque o túmulo estava vazio, e não o túmulo que dá consistência à nossa fé!
Terceiro Ato: vv25-27: A Bíblia
Agora, e só agora, depois de ter criado o ambiente e escutado a realidade, é que Jesus usa a Escritura. Ele frisa que eles “custam para entender e demoram para acreditar em tudo o que os profetas falaram”( v. 25). Notemos bem - não custaram para “saber”, mas para “entender e acreditar”. Pois eram judeus piedosos, que, mesmo sendo analfabetos, conheciam de cor os salmos e as profecias. O seu problema era que, embora conhecessem o livro da Bíblia, e também o livro da vida, eles não conseguiam ligar as duas coisas. Então Jesus “explica” as escrituras - isso é, ele não da uma aula de exegese, mas faz a ligação entre a vida deles e a Bíblia, iluminando a sua realidade com a Palavra de Deus!
Quarto Ato: vv 28-32: A Partilha
Chegando em Emaús, os discípulos convidam Jesus para entrar a e jantar com eles. Se realmente se trata de um casal, então seria entrar na sua casa, no aconchego do seu lar, e não em uma hospedaria, como normalmente a gente supõe. E aqui temos o ponto central da história - pois até agora a explicação bíblica, por tão bonita que pudesse ter sido, não mudou a vida deles. Mas agora sim. Jesus se põe à mesa e: “tomou o pão e abençoou, depois o partiu e deu a eles” (v.30). De propósito, Lucas usa as palavras que recordam a Última Ceia. É a experiência da partilha, da comunidade! Agora o milagre acontece: “Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus” (v.31) .
Neste mesmo momento, Jesus desaparece da frente deles! Porque? Porque, uma vez feita a experiência da presença do Ressuscitado no meio deles, eles não precisavam mais da “muleta” da sua presença física.
E agora eles caiem dentro de si e reconhecem que: “Não estava o nosso coração ardendo quando ele nos falava pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?” (v.32). A Bíblia é capaz de fazer “arder o coração”, mas para “abrir os olhos” é necessário a experiência de comunidade, de celebração , de partilha!
Quinto Ato: vv 33-36: A Missão
Se a história terminasse aqui, seria a história de uma experiência bonita feita por duas pessoas. Isso não basta. Tal experiência da presença do Senhor Ressuscitado exige a formação de uma comunidade fraterna de vida e missão. Os mesmos dois que de manhã fugiam de Jerusalém, pois era o lugar da morte, da perseguição e do fracasso, de tarde se põem no caminho de volta! O que mudou em Jerusalém durante o dia? Nada! Continua sendo o lugar de perigo, de morte, de perseguição. Mas mudou a cabeça dos dois. Em lugar de uma fé pré-pascal, eles agora têm uma fé pós-pascal. Em lugar de desânimo, há entusiasmo e coragem, pois experimentaram a presença de Jesus Ressuscitado. E a história que começou com a comunidade se desintegrando, termina com a comunidade se reintegrando, se unindo, na paz e na alegria, pois puderam confirmar: “Realmente o Senhor ressuscitou, e apareceu a Simão”( v. 34). E os dois de Emaús puderam contar: “O que tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus quando ele partiu o pão” (v.36).
Esta história pode servir para nós como paradigma de um círculo bíblico, grupo de reflexão, ou seja qual for o nome que nós damos às nossas pequenas comunidades. Jesus liga quatro elementos essenciais - a realidade, a Bíblia, a celebração partilhada e a comunidade. É na união entre estes elementos que se revela a presença do Ressuscitado e a vontade de Deus. É na interação destes aspectos da vida cristã que a Bíblia se torna: “Lâmpada para os meus pés, e luz para o meu caminho” (Sl 119.105). Procuremos unir estes elementos nas nossas reuniões e encontros, e descobriremos como se concretiza o desejo do Salmista: “Oxalá vocês escutem hoje o que Ele diz” (Sl 95,7).